quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Pássaros

I-Prólogo
Uma ave pousou em mim e me acariciou com suas plumas. Suas plumas eram flamas incandescentes que reluziam negras na escuridão. Tocando-as ou não, me queimaria. Portanto, toquei-as. Pegando-as, ou não, me arrependeria. Portanto, peguei-as. Ardi em febre por toda uma noite.
II-Desenvolvimento
O suor emergia de meus poros em uma profusão de flocos de sal e ferro. Sentia cada gotícula ser expelida de sua glândula e aflorar à superfície jorrando por minha pele.
III-Clímax
O pássaro da noite aninhou-se provisoriamente em minha cama e cobriu minha pelve, peitos e pernas com suas asas e o quarto incendiou-se invisível e a escuridão foi completa.
IV-Desfecho
A aurora se anunciava e a febre teria de ceder, antes de minhas enzimas tornarem-se debéis e meu cérebo perecesse. O pássaro de fogo era, pois, uma ave noturna e as luzes solares o transformariam numa criatura cinzenta e real, sem a sombra da noite para fazer luzir suas plumas, suas flamas. Levantou voo, seguindo os cânticos dissonantes migratórios.
V-Epílogo
Despertei, o suor seco grudado no corpo e os grãos de sal marinho dispostos em círculos. Ao abrir os olhos, deparei-me com uma pena branca com riscos cinzentos. Sorri e quase gargalhei em silêncio. Fiz a cama e por cima da pluma e dos lençóis joguei uma colcha para cobrir as lembranças e abafar sons de febre e pássaros

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

brincadeira de palavra

e no princípio era a Palavra
e a Palavra era por Deus
e Deus era a Palavra
no meio era a Palavra
e a Palavra era pela Catarse
e a Catarse era a Palavra
e no fim era o Silêncio
e o Silêncio era a Mudez
e a Mudez
era a Catástrofe

domingo, 20 de dezembro de 2009

vinte reais e cinquenta centavos

Esse texto é uma roteirização de algo que vi ontem, no Porto da Barra, as 22h32, sábado 19.12.2009

vinte reais e cinquenta centavos
de troco ou pagamento?
vinte reais e cinquenta centavos
de quatro pés coloridos
vinte reais e cinquenta centavos
de olhos foscos espelhando
a luz da cidade
vinte reais e cinquenta centavos
com cachaça, limão e açúcar
vinte reais e cinquenta centavos
por um orgasmo estrangeiro
vinte reais e cinquenta centavos
para um café frio e uma cavidade seca
vinte reais e cinquenta centavos
e mais nada

Ivan e o Pássaro de Fogo

Me deitei entre o sim e o não
Querendo sim e assim
Corpo, cama, chão e mão
Toda uma gargalhada para um talvez
Para uma e mais outra vez
O sim sem uma proposta futura
Sem nota em partitura
Numa noite branca de luzes apagadas
E febre, flama e pluma
Uma pluma que quedou num lugar vazio
Sem sim, sem não, sem futuro nem nada

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Cobertor ou Fim de Outubro

Eu sou como um cobertor de lã
Numa noite fria de primavera
Daquelas que ninguém espera
E que não dura até a manhã
Porque o sol provê o calor
Fico então guardado
Mofado
Desbotado
Com uns fios lacrimosos
Num pedido choroso
De sinto sua falta
Mas não quero você
Assim
É o fim.

sábado, 24 de outubro de 2009

Helenismo

Eu sou só saudade, um contratempo de saudade, um marca-passo de saudade. Tentei pôr meu coração no crânio, e com isso envolvê-lo numa camisa de força, porque se meu corpo é são, e o equilíbrio enzimático prevalece, meu coração é acometido por surtos e loucuras, precisa ser controlado, mas não consigo.

Tento disfarçar o que posso, e dar um pouco de opacidade à minha incontestável transparência, contudo isso falha, e me esgota. Esgota-me, me exausta. Preciso tecer fibras de espírito de sisal, daquelas bem grossas, para me cobrir. Forjo uma armadura daquelas de aço, misturando o ferro de minhas hemoglobinas e hemácias com os carbonos de meu corpo, para tentar me proteger.

Mas para quê, afinal isso só confina num lugar tão diminuto quanto eu mesma o que me amedronta, pois aquilo que me ameaça e me faz pedir proteção está pulsante em mim, e não posso escapar de mim.

Isso tudo são delírios de um sentimento irrequieto, meio febril, meio são, de quatro câmeras fibrosas e involuntárias, cada uma com suas portas destrancadas e entreabertas para um domínio helenístico.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Reflexões do despertar de uma quarta feira

Meu coração está arranhado. Eu poderia usar clichês como ''quebrado'', ''partido'' ou metaforizar uma verdade e dizer que meu coração sangra. Mas, não, prefiro falar arranhão, afinal arranhar transita na corda bamba que é a tênue linha que separa prazer da dor.

E é isso que me acontece, bem assim, quando vejo, penso ou lembro, e re-sinto você. Não, não há ressentimento e sim, re-sentimento, veja bem a diferença. Eu re-sinto, e re-sinto suas mãos, seus lábios em todos os recintos do meu rosto, e em muitos do meu corpo.

Diria também que meu silêncio fala alto, se assim o fosse, mas não é. Ele é calado, bem baixo, o silêncio o é em sua totalidade, pois não há mais nada a ser dito, por mais que eu queira. Meu silêncio é tão silenciado que me tira a razão da palavra aprisionada em minhas pregas vocais.

Mas ainda assim, é suportável. Não tolero, mas suporto. É uma agonia, quase uma agoniazinha, homeopática, crônica, latente. Rasga um pouco o coração, mas não dilacera, não. Porém, por favor, se você não puder fazer os curativos ou passar um anti-séptico que seja em minhas fissuras cardíacas, vá de uma vez e me deixa limpar meus arranhões. Mas, se você quiser ficar, podemos brincar de arranhar costas, braços, e pernas, e deixar o coração quieto.

sábado, 19 de setembro de 2009

À noite

Estava com uma parte da música Lolita, de Joao Vinicius, meu companheiro do Coletivo Muito Barulho Por Nada (www.coletivomuitobarulhopornada.blogspot.com , se não conhece clica no link!) que é "a noite não acaba, a noite não tem fim..." e pensei em escrever sobre como sao as coisas à noite, quando está é intermininável (pois a crase muda sim o sentido)

Tenho dormido mal
Um sono inquieto se deita comigo
Na cama vazia
Onde um braço morno, ou quiçá quente deveria estar
Mas não está
A inquietude é fria
E está sempre na cama vazia
Mexo de lado a lado
Levanto e me falta o pranto
Ou o canto, ou um canto
Doce ou em noventa graus
Um angulação reta
Da minha vontade que se faz
Ereta
De dormir coberta, aberta, quieta

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Meu amante réptil

Uma história tão fantástica que só podia ser verdade (ou quase)

Eu o vi e não parecia nada mal. Ele tinha uma textura diferente na pele, isso era bem verdade, não era suave como deveria ser a de um jovem como ele, ao contrário era um pouco áspera e rugosa, mas preferi fingir não perceber. Seus olhos eram de um verde amarelado, e eram hipnóticos, e ele sabia bem disso.

Mas tola que sou não pude me afastar, e me aproximei mais e mais, como se envolvida por uma teia de aracnídeo. Com tempo, fui me tornando insensível a sua pele estranha, a seus olhos amarelos e loucos. Tudo tornou-se normal, como se ele normal fosse. Mas que engano cometi...

Deitávamos-nos muitas noites, e nessas horas não havia sinal algum de caráter reptiliano, o sangue era quente, morno, mas não frio. Todavia, a noite tinha varrida sua escuridão pelo dia, e tudo que a escuridão bem escondia, era revelado na luz da manhã. Os olhos, aqueles olhos fundos, graúdos, amarelos, amarelos, como de uma serpente.

Era um inferno muitas vezes, estava tudo sempre a metamorfosear-se entre nós, quando achava que o tinha bem, ele já estava mal, e eu nunca sabia o que fazer, pois pouco dele eu conseguia mesmo compreender e capturar. Tinha a impressão de que ás vezes ele se havia camuflado, ou até mesmo se escondido na bagunça de meu quarto, na bagunça de mim mesma, como se houvesse se entranhado bem fundo em mim, que já era parte minha, e só minha. Aquela parte que tem o dispositivo da autodestruição, vim descobrir depois.

Um dia, fomos dormir, e quando acordei, não era um homem que se quedava mais ao meu lado, com a cabeça encostada em minha clavícula esquerda. E sim um pequeno camaleão, verde, de pele rugosa e áspera, e olhos amarelos arregalados que se deitava sobre meu antebraço.

Pois eis que isso aconteceu, um amante réptil.

Uma análise forense do amor

A imperícia de meus sentimentos
Me consome demais o tempo
Vou me perdendo por aí
Nos braços daqueles cujo olhar me sorri
Falta tanto o discernimento
Mas não sei resistir aquele momento
De penetração de olho
De toque de mãos
De ondulação de quadris
E mais ainda daquele olhar que me sorri
Me desculpe se não foi apropriado
Mas meus sentimentos são sem perícia
De meus dedos fluem carícias
E na hora propícia
Eu me silencio

terça-feira, 1 de setembro de 2009

poemas falsos

Após um hiato...

Ovulação

Queria saber dizer as coisas diferente
Mas não sei
Tanto sangue nas minhas têmporas, quentes
Que não passa para os meus dedos, frios
Meu estômago, vazio
Porém, um coração, contente

Aurora

As luzes frias do inverno
Caminham por minhas mãos
Tenho medo de fechar os olhos
Para não mais despertar
A brisa cálida noturna beijou minha orelha
E eu, eu adormeci embaixo da janela
Com meus dois olhos abertos

terça-feira, 21 de julho de 2009

Uma carta

Meu querido, quis te odiar. Até achei ter odiado você, sei que não foi isso que você me pediu, você me pediu que te esquecesse. Mas achei que te odiar fosse ser mais fácil, o caminho mais simples, mais provável, após tudo e tanta coisa, após todos os seus nãos em réplica a todos os meus sims.

Mas nao consigo te odiar, tentei. Raiva, ah, sim, senti muito, uma ira, uma fúria. Me senti uma própria Fúria, querendo buscar alguma justiça e sentença que se adequasse a seu delito. Mas seria cruel demais, porque você foi cruel demais. Tantas palavras proferidas em com vilania e perversão. Teria medo de mim...muito medo.

Mas assim como um uma placenta foi feita para um feto, eu não fui feita para o ódio. Não digo isso para gabar-me de virtudes, é simplesmente fisiológico, meu corpo tem repulsa pelo ódio, ele fica inflamado, infeccionado, infecção essa que se espalha rápido, pro meu coração, quase uma endocardite. E a mim, me bastam minhas doenças imaginárias de uma leve hipocondria.

Quero dizer, sendo redundante, eu sei, que não posso odiar você...

Mas te conheci, você existiu, nós existimos...talvez você me odeie, talvez não...porque, como já dizia Guimarães Rosa, "Só se pode conhecer um outro, sem perigo do ódio, se a gente tem amor". Eu tenho amor, sou ele, da cabeça os pés, e talvez por isso seja um pouco louca, pois minhas duas metades o são, portanto não sei odiar quem me arrisquei a conhecer.

obs: Influências
Oswaldo Montenegro
Guimarães Rosa
Novos Bahianos

Das tripas, o coração

Eu choro enquanto ouço o vidro estilhaçando no chão
Pisando nos cacos, lascando a sola dos pés
Caminhando
Páro e me deito, rolando pelo vidro
De copos, garrafas e jarros
Que caem e quebram, em pedaços e pedaços
Que rasgam meu ventre
E dilaceram minhas vísceras
Intestinos, miocardio
Enquanto me colo toda de novo
E faço das tripas, o coração

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Pretty Girls Are Never Lonely

Ele me disse para ir embora logo nos primeiros minutos da manhã, mal acabara de despertar daquela noite febril. Ele estava indiferente, fumando um cigarro, enquanto eu ainda estava deitada sob os lençóis. Estava com uma enxaqueca de merlot. Merlot! Como se oferece merlot a alguém? Já era de se esperar que algo assim acontecesse...Enquanto me vestia, coletando as roupas espalhadas por todos os cantos do quarto, começamos a discutir; ele a me apressar, e eu, emputecida que estava, e como estava!, demorava, só para aborrecê-lo ainda mais, afinal, ele teve seu prazer ontem, eu, não, portanto não poderia negar-me essa sutil e culposa liberação de endorfina, seretonina, e não sei o que mais-ina, podia sentir pequenos espamos até, justo agora. Antes de ir, com os sapatos de salto nas mãos, olhei para trás e disse:

-I'm a pretty girl, Carlos. And pretty girls are never lonely.